segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Janelas da Alma

Médicos são o pior tipo de paciente que existe.
Eu sou a prova. Resolvi trocar a marca do meu desodorante e comprei um aerossol da Rexona ("Active"). Hoje fui usar o bicho pela primeira vez e em vez de sair um aerossol saiu uma espuma em flocos, parecendo neve carbônica, que em vez de atingir minhas axilas foi direto no meu olho esquerdo (não me pergunte como). Resultado: agora, seis horas depois, meu olho tá vermelho, coçando e minha visão ficou turva no olho esquerdo. Quando fecho o direito, fica tudo turvo.
Se alguém me contasse uma história idêntica e perguntasse o que fazer, eu, como médico, não teria a menor dúvida: procure um pronto-socorro. Sim, porque provavelmente o desodorante deve ter provocado alguma reação química e tirado a parte mais superficial da córnea - isso leva à turvação visual, à vermelhidão e à sensação de ardência no olho afetado. Tratamento: oclusão. Ou seja: lava-se o olho com muito soro fisiológico, aplica-se uma pomadinha para ajudar a córnea a cicatrizar (o que leva, geralmente, umas 24 horas) e tampa-se o olho afetado com uma bola de gaze e esparadrapo até o dia seguinte.
Fiz isso?
Claro que não.
E olha que estou trabalhando no hospital, bem do ladinho do pronto-socorro, onde eu conheço praticamente todo o mundo e seria facílimo ser atendido.
Acho que nós, médicos, morremos de medo de ir parar do outro lado da equação médico x paciente. Não só pelo medo comum da enfermidade e da doença, mas também pelo medo do ridículo da situação. Eu, pelo menos, fico pensando no que é meus colegas vão dizer ao me ver deste lado do pêndulo. No exercício do nosso trabalho, somos constantemente levados a pensar no paciente como um outro tipo de pessoa: ele tem a doença, eu trago a cura. Portanto, sempre nos sentimos desconfortáveis quando temos que passar para o outro lado. O que não tem fundamento nenhum, já que somos exatamente tão humanos e suscetíveis a doenças quanto qualquer outra pessoa (ou mais, até, já que vivemos permanentemente expostos a todo tipo de risco biológico e social). Acho que nessa hora nos passa na cabeça as vezes em que poderíamos ter atendido melhor determinada pessoa. Melhor do ponto de vista da competência técnica ou da sensibilidade humana, não importa. Mas temos medo de sermos mal-atendidos. Eu, da minha parte, lembro de pelo menos umas 3 ou 4 vezes em que atendi alguém do jeito errado: sem paciência ou verdadeiro cuidado pelo sofrimento dessas pessoas. O que pode ser parcialmente justificado, ao menos, por coisas como cansaço, falta de condições de trabalho, excesso de pacientes para atender etc., mas nunca desculpado. E se eu for uma dessas pessoas que são mal-atendidas? Isso é algo que devia ser melhor estudado: as reações do médico que se torna paciente. Lembro de um ótimo filme (do qual nem sequer lembro o título), sobre um médico que descobria que tinha um câncer na laringe e o tratamento frio, desumano e impessoal que ele recebeu de todos os seus colegas, quando tudo o que ele queria era um pouco de apoio e compaixão.
Ao mesmo tempo, já sei exatamente o que todos meus colegas diriam ao saber que eu tive este negócio no olho e não procurei atendimento: "Tigrão!" ("Tigrão" é a gíria médica para maus pacientes, aqueles que não seguem orientação médica.) Interessante: alguns médicos não gostam quando você os procura por qualquer bobagem; ao mesmo tempo, esses mesmos profissionais não gostam quando você tem algo e não os procura.
Bom, tanto faz. Não vou procurar atendimento.
Melhora sozinho.
Ou não.
Boa sorte para mim mesmo. E Feliz Ano-Novo para todos!

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